terça-feira, 3 de março de 2015

saudade

Em momentos como agora, lembro-me de ti com muita força, com detalhes. Saber que existes neste mesmo instante, lá longe, inunda-me.
Sinto a tua falta. Sei que se começasse agora a enumerar as tuas qualidades, haveria de me perder em alguma, enlevado, antes de conseguir dizê-las todas. Ou talvez não seja possível esgotá-las. Foi precisa esta distância para reconhecer aquilo que, aqui, me parece tão evidente.
No entanto, há horas em que não estou a pensar em ti. Nesse tempo, ocupo-me de assuntos que estão à distância do braço, basta levantar o nariz para olhá-los de frente. Ainda assim, mesmo então, sei que este é um mundo em que existes. Por baixo de tudo, quase sempre sem palavras, há essa certeza. Seria insuportável um mundo em que não existisses.
Os lugares onde fui criança, onde cresci, ou mais tarde, onde a minha vida se decidiu, existem agora, lá longe, indiferentes talvez aos pensamentos que aqui desenvolvo sobre eles. Ao imaginá-los, com a devida diferença horária, deambulo por eles sem corpo, sou apenas olhos, alma, ignorado pelas paredes, pelas ruas, que prosseguem a sua existência sem mim.
Portugal, eu sei que uma parte da falta que sinto de ti é falta de mim próprio. Às vezes, misturo-me contigo na minha cabeça. Como um enorme espaço vazio, como um fantasma invisível, a ausência daquele que fui passeia-se em ti, Portugal. Como um eco que só eu sou capaz de ouvir, as tais paredes e as tais ruas ainda guardam a imagem daquele que fui, das ilusões que tinha, todas essas idades irrecuperáveis. Velhos que conheci novos passam a coxear por esses lugares e não me distinguem nas suas lembranças, crianças que não tinham nascido passam a correr por esses lugares e não me distinguem na sua imaginação.
Mas também sei, Portugal, que uma parte enorme da falta que sinto de ti é falta desse teu corpo subjetivo, desse teu ar, do teu porte, da tua presença física. Às vezes, nos lugares por onde passo, quando me lembro de ti como agora, quando me enches os olhos, parece que te vejo em toda a parte. Os sentidos enganam-me. Começa a parecer-me, por exemplo, que as pessoas lá ao fundo estão a falar em português. À distância de lhes distinguir o entusiasmo vago, mas sem lhe identificar a estrutura, sem divisão silábica rigorosa, parece-me que estão a falar em português, aproximo-me esperançado e, de repente, percebo que não e, por instantes, tudo em mim é injustificado: a minha postura, a minha posição, o meu posto. Foi precisa esta distância para reconhecer o privilégio, tão evidente, de estar rodeado de pessoas a falarem a mesma língua que eu.
Mas haveria muito mais, Portugal. És família profunda, és terra. És toda a história e todo o futuro, não exagero, és caminho. Como disse, não vou aqui enumerar tudo o que te distingue aos meus olhos. Sinto a tua falta, mas não chego a lugares onde não estejas. Levo-te comigo, Portugal. Estás agarrado à minha pele, à minha voz, a tudo o que sou capaz de pensar, sentir e ser. É através de ti, Portugal, que entendo o mundo inteiro.
por José Luís Peixoto

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